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WILIAN MARQUES

Flerte

Não sei sobre o que escrever. Há um excesso de tudo, e talvez seja esse o problema.

As coisas acontecem em silêncio e, mesmo assim, gritam. As pessoas piscam, respiram, se esbarram, e cada gesto contém uma história microscópica, tão viva quanto inútil.

Penso que o mundo virou um arquivo de sensações órfãs: o cheiro de alguém que passou depressa, a poeira que dança na luz, o som de um riso infantil ou mesmo choro, que não tem plateia. Tudo parece pedir tradução, mas a língua se recusa.

Escrever seria recolher o que sobra, migalhas sentimentais, mas o que sobra já não cabe em mim. Há uma doçura trêmula nesse fracasso de registrar o que pulsa.

As teclas pesam, resistem, a tela branca brilha demais, e o pensamento escorre por entre as linhas. De repente, sinto que não escrever é também uma forma de sentir.

As palavras, quando vêm, tropeçam, desordenadas, com a pressa de quem quer existir antes de ser entendida ou lida. Tento organizar o caos, mas o caos tem ritmo próprio, respira abrupto e indomável, bufa. Penso em quantas histórias passam invisíveis, em quantas verdades caberiam num olhar distraído. Alguém acaricia o tecido da blusa antes de vesti-la, um adolescente ensaia coragem diante de um espelho pintado de adesivos, alguém mastiga devagar um pedaço de tédio. Tudo é pequeno e imenso. Há beleza naquilo que não se explica, no gesto que não pede legenda. Escrever seria trair essa delicadeza, mas também seria a única maneira de não deixá-la morrer.

Talvez seja isso o que me resta: habitar o intervalo entre o sentir e o dizer. Um espaço incerto, quase mudo, onde o pensamento se curva diante do banal e encontra algo parecido com fé. Não só a fé no Divino, mas na persistência do instante, nessa centelha que ilumina o nada por um segundo e depois se apaga, satisfeita. Penso que não saber o que escrever é também escrever. O vazio, afinal, tem textura. Ele se espalha devagar, e dentro dele mora uma ternura disfarçada, uma vontade de continuar olhando, mesmo sem saber para onde.

 
 

Criado por Lady Cogumelo - Panorama SC

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