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WILIAN MARQUES

Ruido


Hoje acordei com o ronco grave do caminhão recolhendo o lixo da rua. Um som áspero, metálico, que parecia mastigar o dia antes mesmo de ele nascer. Há quem ache o barulho uma agressão, mas eu o escuto como quem reconhece um velho inimigo que nunca foi embora. Os vizinhos de cima metralham passos como se ensaiassem um amistoso futebolístico. O cachorro da casa ao lado ladra para o vento, e o vento, preguiçoso, responde batendo uma folha de palmeira na minha janela. Tudo vibra, tudo chia, tudo reclama existir. Até o café, quando ferve, faz um ruído de impaciência. E penso: talvez o mundo só continue girando porque ninguém aguenta ouvir o próprio silencio, o coração batendo no vácuo.

Na rua, os carros se empurram com buzinas, uma sinfonia desafinada que mantém os vivos em movimento. Um rapaz tosse na fila do mercado, uma mulher suspira pesado diante de uma fila, um rádio anuncia tragédias com entusiasmo de um locutor esportivo. Há um rumor contínuo, uma espécie de respiração coletiva que disfarça o tédio e o medo. Os sons colam na pele, penetram os ouvidos como pequenas confissões involuntárias. É difícil distinguir o que é humano do que é mecânico, o homem que rosna palavrões no trânsito e o motor que bufa têm a mesma fúria sem destinatário. No fundo, todo ruído é uma tentativa de dizer “estou aqui”, ainda que ninguém queira ouvir.

Volto para casa e há um instantes em que tudo silencia. O relógio parou, o vento dorme, e até o cachorro parece ter desistido. O silêncio é tão espesso que escuto minha própria garganta engolindo saliva. É aí que o medo se instala, não o medo do nada, mas o medo de me ouvir inteiro, sem ruídos para me esconder. Fico parado, esperando que algo volte a ranger, que uma buzina me salve do abismo. Então no asfalto um caminhão freia ruidoso, e, por um momento, sinto um alívio absurdo. Penso que talvez o ruído seja a maneira mais humana de rezar. Fecho os olhos, e o mundo continua chiando lá fora, igual, e ainda assim um pouco diferente, como se o silêncio tivesse me ensinado a escutar o barulho com uma ternura cansada.

 
 

Criado por Lady Cogumelo - Panorama SC

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