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WILIAN MARQUES

Marmita


Ela chega: um artefato de sobrevivência, quente da panela do restaurante ou fria da geladeira de casa. A marmita, esse pequeno artefato de alumínio ou isopor, guarda mais do que sustento: guarda uma cartografia íntima e sinuosa. No refeitório, à sombra da obra ou no banco do carro, ela é uma pátria portátil e abafada. Arroz como um campo plano, feijão entornado como um rio, nacos de carne que não negociam seu sabor. Quando a tampa range e se abre, libera um vapor que cola na pele, um cheiro que anuncia uma verdade despojada: a vida não insiste em ser bela, apenas em perseverar.

A marmita é a aceitação feita alimento.

Não julga sua origem, feita com zelo profissional ou com o carinho das sobras de ontem, acolhe improvisos e generosidades. Dentro dela, o Brasil cabe sem censura: o ovo solitário ao lado do estrogonofe requentado, a batata frita molenga, o macarrão de anteontem. Aqui, não há estética que prevaleça sobre a necessidade. Existe a mistura. E nesse amálgama reside uma verdade crua que nenhuma porcelana seria capaz de suportar.

O ritual é desarmónico e sagrado.

Não demanda finesse, apenas o talher, as vezes de plástico, e sua missão de conciliar mundos. Cada garfada é um tratado de paz, dissolvendo conflitos. Os sabores se abraçam sem pedir licença, criando uma harmonia rude que nenhum chef poderia premeditar.

No rugido das betoneiras, no silêncio abafado do carro ou na algazarra resignada do refeitório, a marmita é um intervalo, um consolo tácito. O feijão invade o macarrão, a carne divide seu território com a farofa, a salada se oprime, e desse encontro imprevisto nasce uma ordem desajeitada.

A marmita ensina que o que restou ainda pode ser um começo. É democrática não por pedir igualdade, mas por contentar-se com a existência. Uma marmita bem misturada é uma canção solene, prática, sem lirismos, mas com o poder imenso de alimentar.

Ao fechar a tampa sobre o vazio engordurado, o mundo retoma seu lugar. O ar ainda guarda o aroma, o perfume agridoce de temperos e vida.

Há melancolia nesse aroma, mas também um saber profundo: a satisfação de uma missão cumprida. Sem vaidade, sem espetáculo. A marmita me revela que viver talvez seja este movimento simples: abrir espaço para o que chega, aceitar a alquimia do que se mistura, fechar a tampa com gratidão e seguir. Amanhã, haverá outra. Igual e completamente diversa.

Discreta e definitiva, tal como o próprio país que teima em se reinventar, silenciosamente, no fundo de um pote de alimento misturado.

 
 

Criado por Lady Cogumelo - Panorama SC

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