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WILIAN MARQUES

Arrepio


Urussanga desperta sob o baque seco de mais um dia que não promete nada além de susto.

Não é o sino da Kamola que bate, mas o ranger de portas trancadas antes mesmo do sol vencer a cerração.

Na fila da farmácia, quem espera um analgésico pode ganhar uma coronhada de brinde.

O tráfico, esse senhorio de rosto difuso, cobra seu aluguel com carne e ossos — paga-se em prestações de medo.

Não pede licença: entra pela janela, sussurra para o filho do vizinho, oferta paraíso em farelos, cobra inferno em parcelas.

Nas esquinas, não há meninos de calção rasgado disputando golzinho. Há sombras magras, de pupila dilatada, que trocam infância por pó.

A droga virou hóspede de luxo: mora no casebre simples, mas também no sobrado orgulhoso, no apartamento moderninho, no quarto do filho único que ainda sorri no retrato da estante.

E quando a noite se estende, arrasta junto os que perderam o pudor — ladrões que não fogem, apenas mandam que você corra.

Os roubos agora têm horário comercial.

Saqueiam na cara dura, como quem cobra dívida atrasada.

As lojas tem agora muito mais olhos atentos e desconfiados. Os velhos viram prisioneiros de suas casas.

As mulheres, essas aprendem a carregar chaves e a vida entre os dedos — minúsculas adagas imaginarias contra monstros de carne e osso. E as que não podem fugir?

As Marias da Penha, de maquiagem borrada, incontáveis papeis de medidas protetivas que não protegem nada. O agressor gargalha do papel, do juiz, da vizinha que finge não ouvir.

O lar é cela: quatro paredes que ressoam gritos engolidos até virarem obituário. E o vizinho, depois, coça a cabeça: “Sempre soube que ia dar merda.”

A polícia se esforça, mas a lei manca.

O traficante troca de esquina, o estuprador sai pela porta da frente, o marido violento folheia a intimação como se fosse folheto de supermercado.

Enquanto isso, Urussanga, coitada, se acostuma.

O medo decora ruas, a violência se instala na mobília.

Urussanga respira, mas respira com chiado de pulmão perfurado. E quando a noite se cala, alguém conta os vivos como quem confere gado na cerca.

Amanhã tem mais. Sempre tem.

E no escuro, a pergunta morde o travesseiro: quem será o próximo a sangrar?

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