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WILIAN MARQUES

Momento

Era sábado. E o sábado, naquela época, tinha cheiro.

Cheiro de panela morna, de pipoca que estourava preguiçosa na cozinha, de cobertor que guardava o calor do dia, de bolacha meio amolecida. O piso frio de madeira da sala esfriava sob os pés descalços, e a lâmpada jogava uma luz amarela nas paredes, como se desenhasse a quietude da casa.Lá fora, o mundo parecia adormecer de um jeito diferente. Os carros rareavam nas ruas, as vozes se aquietavam, as luzes das janelas apagavam, e até o vento soprava mais calmo, como quem respeitasse aquele ritual secreto: o sábado à noite era nosso.

Então, vinha ela. A musiquinha do Supercine. Bastava soar o primeiro acorde, aquele piano manso, meio sonhador, e a sala inteira mudava de temperatura. A TV brilhava como uma luz quente, e o sofá se transformava em barco, nave, esconderijo. Sabíamos, sem que ninguém dissesse, que vinha coisa boa: um filme de suspense, de tiro, de monstros ou de sonhos e aventuras impossíveis. Não importava. O que importava era a viagem. Era aquela sensação de que, dentro de casa, tudo era seguro, e lá fora o universo inteiro continuava, misterioso e inalcançável. Às vezes, entre um Supercine e outro, surgia o tema do Arquivo X, e aí, meu amigo, a alma arrepiava como se uma janela invisível se abrisse para o desconhecido. O som fino, quase cortante, parecia atravessar a casa como névoa. O Mulder jurava que a verdade estava lá fora, e a gente acreditava com todas as forças. Cada sombra na parede ganhava olhos. Cada estalo da madeira podia ser um chamado. Era medo, mas era um medo bom: aquele que lembrava que o mundo ainda tinha mistérios demais pra ser todo explicado.

A madrugada avançava, o filme rolava, e a casa toda parecia flutuar naquele intervalo precioso entre infância e coragem. O lençol já puxado até o queixo, a tigela de guloseimas quase vazia no chão, a sensação gostosa de estar protegido num mundo que ainda permitia mistério, sonho e aventura. Hoje, quando por acaso ouço aquele piano do Supercine ou o sussurro do Arquivo X, não ouço só uma música. Eu ouço a respiração morna de uma lembrança presente. O barulho abafado dos chinelos no corredor. O cheiro de coberta, comida e tapetes gastos. A Mãe me mandando ir dormir. O colo invisível do sábado à noite, abraçando quem éramos, jovens ingênuos, antes que o tempo e a pressa nos ensinassem a dormir sem filmes, sem medo e, pior, sem sonhos.

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