Gilli - o pároco que comeu nota fiscal
- MARCIA MARQUES COSTA

- 31 de jul.
- 5 min de leitura
Por Marcia Marques Costa

Colonizada por imigrantes italianos vindos do Norte da Itália, a cidade de Urussanga, cujo nome lembrava o tupi-guarani dos indígenas que habitavam a floresta, há anos lutava para ter sua igreja.
Primeiro foi uma modesta capela na parte mais alta do conglomerado de residências que tinha uma praça triangular no centro. De um lado, as construções margeavam o rio e de outro tinham como fundo uma cadeia de montanhas.
Com os trabalhos comandados por um padre piemontês de nome Luigi Marzano a pequena capela em alvenaria tomou forma e nasceu o sonho de uma bela igreja e de uma escola que abrigasse a congregação das freiras do Sagrado Coração de Jesus para ensinar os filhos dos imigrantes a ler e escrever.
Marzano era jovem alto, bonito e magro, que percorria a extensa paróquia montado em seu cavalo branco arrancando suspiros das jovens donzelas e imprimindo respeito aos homens, os quais tiravam o chapéu diante de sua presença. Mas logo a sua atuação contrária à maçonaria e a algumas lideranças políticas locais, transformaram-se em queixas na arquidiocese, com Marzano voltando para sua pequena Botigliera D’Asti.
Chegava a Urussanga o segundo pároco, também de nome Luigi, porém baixo e gordo, com ares de franciscano e muita paciência para intermediar as frequentes discussões numa comunidade que trazia da Itália o espírito politizado e contestador e que o imprimia em siglas partidárias.
Em dialeto vêneto e em latim, o segundo Luigi, que ficou conhecido por seu sobrenome Gilli, buscou na fé o caminho para a união dos cidadãos. Estimulou-os a pensar numa bela igreja com uma torre bem alta para colocar sinos, lembrando-os de suas comunidades deixadas além-mar.
Diante das dificuldades financeiras dos imigrantes recém chegados, Gilli considerou ser melhor construir primeiro a torre e depois a igreja, com temor que não quisessem mais a torre depois de construída a Casa do Senhor.
Bazares, novenas, rifas, ofertas de devotos e trabalho voluntário foram as formas encontradas para que a construção da torre saísse do projeto.
Faltavam os sinos.
Padre Gilli, então, convidou o amigo Pedro Copetti e viajou para Turim, região de onde veio, para adquirir os sinos e o relógio da torre.
Compra feita, inicia o caminho de volta, mas não seria fácil ouvir pela primeira vez o som que marcaria as horas, os chamaria para a missa, anunciaria a morte de alguém ou os alertaria para o perigo das tempestades.
A pedido de Caetano Bez Batti, que adorava caçar, compraram uma espingarda e, para trazê-la, tiraram os pesos do relógio que viriam dentro dos sinos e alí colocaram a espingarda.
Chegando ao Brasil o feito foi descoberto pela alfândega. Padre Gilli e Pedro foram parar atrás das grades, acusados de contrabando de armas.
Desesperados e negando o fato, os dois conversavam em sua cela.
-O que vamos fazer agora Padre? perguntou o Pedro angustiado.
-Bom, se a gente mostrar que tem nota fiscal nunca mais saímos da cadeia. Queimar não dá, porque faz fumaça e cheiro. Então, acho que teremos que comê-la, explicou pacientemente o Padre ao colocar sua metade na boca e oferecer o outro pedaço ao amigo. Comer a nota fiscal liberou-os da polícia por falta de provas do delito, mas manteve os sinos e o relógio retidos na alfândega criando grande ansiedade na população e dando início às duras batalhas por uma recuperação que só veio muitos meses depois e com a ajuda de um influente comerciante no Rio de Janeiro, casado com filha de Urussanga - Luiz Araújo.
Sem conseguir liberar os sinos e o relógio, Araújo aguardou o leilão da Receita Federal e comprou-os por cerca de 80% do valor pago na Itália.
Finalmente os sinos e o relógio chegam a Urussanga, tendo sido necessário investir mais dinheiro para pagar o frete de navio e trem. Nasce mais um problema.
O relógio seria fácil instalar na torre.
E os sinos, como colocá-los?
Não poderiam ser levados pela estreita escada de madeira que conduzia o zelador até os quase 45 metros de altura da torre. O último dos quatro, com aproximadamente 900 kg, acabou tornando-se um desafio a ser enfrentado. O peso dele, a grande altura da torre e a falta de equipamentos que pudessem erguê-lo sem que caísse e quebrasse, tornaram-se fatores que impediam a conclusão da obra.
Por mais de um ano, Padre Gilli pediu durante as missas que alguém se habilitasse para a tarefa. Mas ninguém tinha coragem. Ainda estava viva na memória popular o dia em que Caetano Bez Batti, o irmão do prefeito Lucas Bez Batti, havia tentado colocar o primeiro sino comprado para a torre, com cerca de 250 kg, e o mesmo se espatifou no chão porque a corda de couro trançado se partiu no meio do caminho. O medo tornou-se maior que a vontade de ouvir os sinos.
Até que, certo dia, Ernesto, filho de Ferdinando Bettiol, sensibilizado com tantos pedidos e revoltado com o falatório sobre o Padre que respeitava, chegou em casa e disse a sua esposa:
-Se o Padre pedir de novo para colocar o sino eu vou levantar e dizer que coloco. Mas com uma condição: tem que ser do meu jeito e não quero palpite de ninguém.
-Tu estás louco, homem! E se cair e quebrar?
-Então tiro meu dinheiro no banco e pago! afirmou o decidido Ernesto.
O padre pediu e ele comunicou sua intenção de colocar os sinos durante a missa, sendo aplaudido pelos presentes. O dia foi marcado e Ernesto iniciou então a tarefa de fabricar, na ferraria da família, com a ajuda do irmão Angelo Bettiol, uma barra de ferro que suportasse o peso do sino maior e que ficaria no alto da torre para colocar a corrente, que também foi fabricada por eles, para puxar o sino, além das roldanas e demais acessórios necessários à perigosa tarefa.
Ernesto solicitou ajuda aos amigos David Copetti e Baptista Fontanella para o teste que foi feito no dia anterior e também no dia da colocação dos sinos.
Sábado, o sol mal havia despontado e Ernesto chaveava a porta de entrada para subir na torre. Foi iniciada a operação que só terminou 12 horas depois. Enquanto os gritos dos corajosos fiéis que tentavam erguer os sinos de bronze anunciavam suas ações e se confundiam com as vozes dos que cantavam o “quem o pagará” na praça, Padre Gilli, com a Bíblia aberta e o rosário na mão, andava ao redor da capela rezando e pedindo proteção a Deus. Quando passava pela torre se benzia e olhava para o céu.
Passou o dia inteiro rezando, se benzendo e rodeando a capela.
Na praça logo abaixo, várias pessoas aguardavam ansiosamente pelo resultado da operação, pois até uma banca de apostas foi aberta e criada uma música em dialeto perguntando quem pagaria se o sino caísse e quebrasse:
“Dim, dom, della, La spacà la campanella; Dim, dom, dà! Chi la pagherà?”
Felizmente, as preces do padre foram ouvidas, o enorme sino foi colocado no alto da torre e o som da ousadia e da fé ecoaram anunciando o início de uma longa história.
Os que apostaram em Bettiol puderam dividir o prêmio em dinheiro e soltar foguetes.
O relógio e os sinos da torre da igreja matriz tornaram-se parte da vida e da história urussanguense, e chegou a ser, depois de 87 anos de sua instalação, motivo que levou jornalistas do Jornal Panorama a viajarem para Turim e para a pequena Novara, com o objetivo de conhecer a fábrica onde foram produzidos o relógio e o sinos para reatar o elo entre Urussanga e aquelas comunidades, com uma bela reportagem.
Mas isso é outra história, entre as tantas de alegria e tristeza que aconteceram ao som dos sinos da torre desta cidade que hoje é chamada de Bendita, na língua da pátria mãe.










